Um grito ecológico
“...No meio de tanta dor, o Biguá conformou-se e rendeu-se à evidência da tragédia – o filho jazia morto a seu lado...E deu de chorar à sua maneira – a que os humanos não decifraram ainda. Mas, o Biguá chorava”
“Milhares de pessoas olhavam para a baía, para as águas da baía que são as águas do mar que formam o mar da baía e ninguém suspeitava nada do que estava acontecendo nas águas deste mar da baía ou na baía das águas deste mar.
Milhares de turistas continuavam deslumbrando-se com as belezas das águas do mar da baía e permaneciam de olhos abertos tentando guardar as imagens belas destas belas águas da bela baía do mar.
Milhares de banhistas usufruíam das delícias das águas do mar da baía, mergulhando, nadando.......
Milhares de outros freqüentadores passeavam por sobre a maciez das areias brancas da praia imensa ou nelas se deitavam ou nelas se enterravam ou nelas brincavam ou nelas se amavam – o que era freqüente- e, ali, se quedavam ao acalanto das ondas remansosas do mar da baia, da baía do mar, sacolejando os corpos enrolados nas areias soltas e evolando as almas na espuma branca a beijar-lhes os pés, a coçar-lhes a planta dos pés, a acariciar-lhes a pele bronzeada pelos afagos do sol escaldante dos trópicos do mar-oceano e eles devolviam tudo às águas azuis do mar da baia engolindo os beijos e os derriços e os amores e os enleios e os prantos e as dores e os milhões de anseios com que enleavam os corpos nas ânsias incontidas que lhes adornavam as almas invisíveis nos sonhos do encanto e da ilusão sofrida.
Somados todos estes milhares de seres existentes à frente das águas azuis deste mar da baía, da baía deste mar, é fácil pressupor-se que se trata de milhões de humanos continuando a passar olhando e a passar desfrutando da beleza das águas do mar da baia deslumbrante.
E, ali, até quanto se possa avaliar, todos os olhares destes milhares e milhões de humanos perderam-se no horizonte.......ninguém enxergava nada e cada um acreditava só no que via, que era o nada que se podia ver além disto – o enxergado e o visto que ninguém via.
E foi por causa desta limitação visual dos humanos que a imensa fauna que nas águas da baía mora e passeia, nela nasce e vive e morre e se alimenta ou sobrevive nos manguezais circunvizinhos e limítrofes, se resolveu a unir esforços, na solidariedade que lhes é imanente, enfrentando a sobrevivência.
Dado o alarme do vazamento do óleo da imensa refinaria, pelos peixes que viram primeiro e pelo Biguá, logo em seguida, a fauna se pôs em polvorosa.”
“O Biguá tomou o comando da parte que lhe dizia respeito e conclamou todos os demais componentes da fauna da baia e cercanias a somar esforços na luta que se afigurava descomunal entre a vida e a morte.”
“Como os humanos, também eles eram milhares, somavam milhões e equilibravam o tão propalado ecossistema, sem eles impossível de ser mantido”.
“ A tragédia é que os humanos sabiam desta sua imprescindível contribuição ao equilíbrio ecológico mas pareciam ou fingiam ignorar esta afronta suicida.”
“Um ar de pânico deu de carregar o ambiente e o que se pôde ver foi uma correria aflita e desengonçada e sem rumo da infinidade de caranguejos e similares, desarvorados e aflitos, procurando cada qual a sua toca e seu esconderijo, nela se protegendo, na esperança ilusória de, assim e desta maneira, escapar do desastre fatal”.
“Dava, até, para rir, no cúmulo e no patético da cena, vendo a aflição dos atônitos artrópodes.Atropelavam-se, engalfinhavam-se em brigas grotescas e de desespero e, na porta de muitas tocas, o tumulto deixava à mostra, patas e membranas e demais pedaços dos seus corpos, estraçalhados uns, outros mutilados de todos os modos e maneiras, todos, igualmente, patenteando a fúria da luta pela sobrevivência, travada de forma tão singular e violenta, no areal onde sempre conviveram pacificamente, mexendo-se, ainda, pulando em acrobacias que o último sopro de vida acalentava nos momentos que antecediam a morte, aos pulos e aos saltos que eram protestos inócuos de angústia e desespero, num bailado estranho, ao ritmo do estrebuchar da agonia, formando um espólio dantesco no rescaldo da pugna caricata aos nossos olhos mas triste pelo seu significado, marcando a ansiedade em conseguir segurança num abrigo deficiente. No fundo, era patético”.
“Mal sabiam eles que de lá sairiam, os que pudessem, a toque de caixa, se tal conhecessem, mas com a boca e os pulmões atochados do veneno mortal da hecatombe do petróleo para morrer na praia – escárnio da linguagem retratando o desespero e a morte”.
“Este trágico suicídio coletivo mancharia o homem como mancharia as águas do mar da baía....”
“....Vida de pescador é assim mesmo.O pescador é homem do mar, nele mora e habita.É do mar que vive. De lá retira o seu sustento.À terra só desce nas horas da precisão. Vai pra descarregar o peixe.Vai pra consertar o barco. Vai pra remendar a rede. Vai pra abastecer o barco. Vai pra retornar ao mar de barco. Vai pra carregar os suprimentos com que se alimenta no retorno ao mar. Vai pra voltar de barco mar adentro, oceano além, até encontrar peixe, até que houver e que Deus dê. O pescador é um homem do mar”.
Felipe disse isto tudo em voz alta para si mesmo – talvez quisesse dizer tudo isto para os peixes o ouvirem. Mas, os peixes estavam todos mortos e não ouvem nada ainda que se trate da voz de pescadores vivos”.
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto para as gaivotas buliçosas e atrevidas cortejando o percurso do barco até à praia ou ao cais do destino, vigiando a rede carregada do cheirum dos peixes, o barco adernando cheio de peixes, engrossando este cortejo embandeirado de fartura e glória, onde o pescador e os peixes são personagens primeiros desta procissão farta de alimentos e de aves marinhas.....”
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto a Iemanjá – rainha do mar de todas as baias do mar. Mas, Iemanjá, envergonhada, permaneceu nos fundos do mar,recusando-se a olhar de perto o assassinato inglório dos moradores do seu reino e súbditos do seu império”.
“Felipe, talvez quisesse dizer tudo isto para Deus dos Céus e para os anjos e os santos e os arcanjos e os querubins e os serafins e as potestades incontáveis que semeiam o cosmos misterioso e infinito...”
“Felipe, talvez, quisesse dizer tudo isto só para a sua alma ......também não pactuava com esta destruição em massa e recolheu-se ao mais profundo do seu âmago chorando m silêncio”.
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto e nem ao certo soubesse para quem teria de dizer isto tudo que ele dizia sem ouvir resposta de qualquer espécie”.
“O pescador Felipe passara todos aqueles dias abrindo covas extensas para enterrar os peixes e os caranguejos e os Biguás mortos.”
“Cansado, sentara-se à sombra do manguezal.Acabara de cobrir a última cova aberta onde enterrara uma infinidade de criaturas mortas.........o caranguejo parou de se mexer e, num esforço doloroso, virou-se de costas...mexeu lentamente os tocos locomotores que lhe restavam apensos ao corpo, quedando-se em definitivo na inanição crepuscular da vida. Estava morto. Felipe deu-se conta.....Pegou-o nas mãos e ficou a olhar-lhe o corpo mutilado e enegrecido pelo óleo escuro durante algum tempo. Visão macabra”.
“............Com as mãos, o pescador alisava o monte de areia encimando a cova rasa onde jogara o caranguejo mutilado..... recolheu-se dentro de si e deu de falar com a alma, como se rezasse a oração que agradaria aos céus. E assim formulou a prece:
“ Senhor, vós que criastes o homem à vossa imagem e semelhança e o fizestes rei da criação e lhe destes os animais e as aves e os peixes e os crustáceos, os frutos da terra e do mar, para que deles se alimentasse e subsistisse, o fizestes com a dignidade devida a todo o ser criado, tende piedade do homem que criastes e a quem recomendastes a preservação da natureza.Compadecei-vos, Senhor, da humanidade que na ambição e na ganância desmedida deposita a alma e escraviza o corpo. Tende piedade e misericórdia da criatura humana, fruto do pecado do egoísmo. Não permitas mais, Senhor, que a natureza seja agredida e que a vida dos mares e dos rios, dos vales e das montanhas permaneça para sempre a salvo, usufruindo do encanto e da beleza que lhes destes no ato sublime da criação do mundo. E, por fim, perdoai-nos, Senhor, os crimes perpetrados pelo homem contra a natureza e afastai esse pecado da humanidade para sempre, amen”.......
“O pescador pegou o Biguá exangue, agonizando, aconchegou-o ao peito e, antes de o socorrer, jogou uma pedrada atingindo em cheio o urubu a fita-lo com aqueles olhos de arrogância insolente e provocadora.”............................
“Fazia tempo que o Biguá rodeava o filhote........Chegou até ali mas caiu de morte na areia da praia, debatendo-se no estertor da morte.....Já o arrastara o quanto pudera.Puxara-o pelas asas, empurrara-o pelo bico, pelas patas, a todo o corpo ajuntara forças tentando liberta-lo”.
“....No meio de tanta dor, o Biguá conformou-se e rendeu-se à evidência da tragédia – o filhote jazia morto a seu lado..... Tinha a certeza de que estava morto. E deu de chorar à sua maneira – a que os humanos não decifraram ainda. Mas, o Biguá chorava...........................”
“Quando, pela madrugada, Felipe, o pescador amigo dos peixes e dos Biguás, se encaminhava com o seu barco na tentativa de pescar alguma coisa, deu-se conta do que se passara, ali, durante a noite.
“ Aproximou-se. O Biguá- vivo agonizava de bruços sobre o filhote morto. Ao redor, nas areias revolvidas, os indícios de briga violenta. A um canto mais adiante, o Urubu, com um olho vazado e caído da órbita, sangue escorrendo pela cabeça, rodopiava sem cessar em volta de si mesmo, num rodar de angústia e dor que o entontecia – mariposa enlouquecida e tonta no bailado sem retorno em volta da luz da lamparina.
“Felipe pegou os Biguás mortos e foi enterrá-los numa cova que abrira a dois passos.O Urubu, num supremo acúmulo de forças, alçou vôo rumoroso mas desnorteado e sem rumo até engasgalhar-se no cume da ramagem do arvoredo do manguezal onde se enfronhou com o ruído da agonia e ânsia da morte”.
“ Os Biguás vinham em revoada.Era um retorno festeiro.....Nem Felipe esperava que eles aparecessem tão já, como todos os outros pescadores, embora o ansiasse.....
“O certo é que os Biguás estavam ali e com eles a vida voltou a pulular nas areias e nas árvores do manguezal....
“A um canto, Felipe, de pé, solitário, compartilhava, à distância, da alegria e do sorriso destas criaturas tão expansivas com o regresso ao seu ninho e não se cansa de olhar aquilo.”
“Era um milagre, dizia”.
“Contagiado pelo extravasar tão alegre da chegada destes seus irmãos de raça, o seu Biguá readquiriu todas as forças perdidas. Revigorou-se, bateu as asas, ergueu-se, deu dois, três, perdeu a conta dos passos e, num vôo confiante, emparelhou com outros Biguás, esvoaçou por sobre as águas serenas da baía, viu, outra vez, do alto, as terras do seu reino, as águas das suas terras, o espaço dos seus domínios e, de regresso, num vôo rasante, raspou pela cabeça do seu protetor amigo e pousou no mais alto das árvores do manguezal.Equilibrou-se e olhou firme para o velho pescador, numa homenagem de gratidão. Cruzaram-se os olhares – Biguá e pescador, homem e animal, a natureza ali representada pelos dois seres que, igualmente, fazem parte do mesmo universo. Felipe firmou seus olhos marejados de lágrimas de sabor eterno, repassadas de amor à natureza que o envolvia, nos olhos de gratidão inexplicável do Biguá agradecido. Não sabe como mas, ambos choravam.”
Um comentário:
Vasco,
Estou lendo o seu "Porque choram os Biguás" e estou adorando; tanto pelo lado ecológico como pela poesia que vou encontrando por lá.
Abraços,
Cissa de Oliveira
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