sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O SOLITÁRIO DA MONTANHA


O Solitário da Montanha

Romance
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A arte que tem o dom de transformar as partituras de fogo do silêncio, para aí edificar um reino de luz e de beleza, onde a palavra e a imagem constituem os achados antológicos de maior relevo, só podia mesmo sobreviver a todas as idades do homem e chegar até nós de forma exuberante e serena.
A literatura é essa arte ancestral e mitológica, pois contemporânea do homem primitivo e das religiões fundadoras da verdade e de todos os cenários de redenção e de ressurreição dos devaneios humanos e de suas veladas esperanças.
Os poemas heróicos das civilizações primitivas, as fábulas com que no passado os ensinamentos e sabedorias foram transmitidos, as gestas medievais, o teatro de destinos cruzados com que os gregos tanto se bastaram, os romances de cavalaria, os tratados filosóficos de todas as utopias políticas, o romance burguês e de costumes sociais dos séculos dezoito e dezenove são exemplos de literatura que se fez para a glória dos valores mais afortunados que o homem moderno representa.
O romance é, por essência, o maior de todos os empreendimentos poemáticos. Enquanto a poesia se faz com a estética do fragmento e da linguagem, o romance se faz com a forma, o conteúdo e a visão de mundo dos escritores mais afortunados. O romance, repito, se faz com a unidade dos arquétipos sociais e psicanalíticos, com a unidade da expressão literária a tecer os fios de ouro da semântica.
Um romance se faz com estruturas relacionais e com enredos polifônicos e assim também com gestos e ações de sentido universal e filosófico quando se trata de um romancista de talento.Existe um movimento no romance que somente o romancista compreende em um primeiro momento.
No entanto, quando o autor de um romance é, ao mesmo tempo, criador e criatura e outros universos, gêneros literários e polifonias para além da dispersão e da unidade do ser, como é o caso dos poetas e dos que sabem a arte do pensamento por imagens ( ensaístas e críticos literários de maior estofo), é claro que desse autor podemos e devemos esperar o melhor.
E o melhor, acredito, é o que podemos colher deste belíssimo romance- O Solitário da Montanha-( São Paulo, Editora Nova Aldeia,2005), última criação de Vasco dos Santos, um dos maiores e mais eruditos arautos do romance histórico e do mar salgado da escrita na literatura de língua portuguesa.
E o que este maduro romance documenta?Uma história de amor e heroísmo, uma história de movimento e de ação do espírito posicionada contra os contextos arcaicos da imensa violência do mundo. Somente a vida, louvada a partir da solidão dos que amam, faz sentido neste romance de enredo sublime, cuja leitura recomendo com entusiasmo.
Não é feita de matéria bruta a sua tessitura linear, nem de discursos formais enfadonhos é tecido o enredo exemplar desta narrativa. O autor, ao contrário, a escreveu com as tintas da paixão e a ungiu com a aliciante sintaxe da solidão e do desejo, fiel ao seu ideário de esteta e à sua vocação de escritor de estatura maior.
Restaria uma palavra a dizer sobre o enredo deste grande romance e desta grande sinfonia estilística, que tanto me tocou a emoção e o engenho, que tanto me curou da intensa agonia de viver e que tanto me curou também com o seu estupendo poder de catarse e efeitos virtuais e sinérgicos que se lêem a partir do seu articulado.
Nem tanto assim, acredito, deveria proceder um prefaciador, pois não me é lícito roubar ao leitor o prazer de aprender com a sedução da leitura. A estética da recepção existe para isso: privilegiar a interlocução, restabelecer os princípios maiores da interação e da alteridade.
Se aqui fosse somar o talento do escritor que arquitetou este livro com a erudição e o talento que sempre remarcaram a produção do romancista, do ensaísta e do poeta Vasco dos Santos, creio que teria motivos para dizer que estamos diante de um dos nossos maiores literatos.
Lícito não me seria também calar acerca da claridade estética deste texto sobre a sua leveza e concisão de linguagem, sobre a sua disciplina formal e o seu rico e diversificado conteúdo. Fica aqui a recomendação da leitura: imperdível, humana, maneirosa, sutil e desafiadora, sob qualquer ângulo em que o romance e o seu argumento aliciante possam ser examinados, para glória da literatura que hoje se pratica no Brasil.
Fortaleza, 29 de Setembro de 2005
Dimas Macedo


“.....Dumas sentiu aumentar a ansiedade e não despregou mais os olhos do alto dos penedos-juntos onde a águia se alcandorava. Parecia sisuda, de tão solene, calcando a bandeira branca com as unhas, alongando a cabeça altaneira espaço além, com os olhos estáticos, parados, pespegados no infinito. Depois, com o mesmo carinho com que estendera a felpa branca sobre a rocha gigante, a recolheu e acondicionou segura nas garras aduncas de suas patas. Num último olhar sobranceiro sobre o cume da montanha, ergueu a cabeça alongando o pescoço esbelto, bateu as asas num primeiro movimento de iniciação do vôo imponente e lançou-se ao espaço na viagem do retorno anunciado. Fê-lo com a graciosidade e magnitude costumeiras. O pano branco espadanava-se em acenos que Dumas interpretava com gesto de convite apontando-lhe o caminho dos céus, o rumo da Eternidade. Essa era a rota do seu destino. A estrada mais curta na configuração do sonho e do anseio, da utopia acalentada, da certeza absoluta a alimentar-lhe a alma em tantos arroubos de êxtases sublimados. O sublime e o belo, o esplendor da verdade, estão ali ante os seus lhos fechados na introspecção do milagre e do mistério. No rastro tracejado no céu pelos contornos da bandeira branca descobre o rumo do infinito. Permanece de pé no enlevo propiciado pelo vôo sublime da águia cortando o espaço como flecha incandescente. Irá acompanhá-la passo a passo até onde a sua mente alcança. Perderá a visão mas não a perspectiva e menos o rumo. Irá segui-la até ao infinito. É lá que mora o seu desejo. Fechou os olhos na oração inebriante a inundar-lhe a alma. Já não vê a águia e o pano branco da misteriosa bandeira desapareceu e não drapeja mais à frente dos seus olhos cansados. Envolveu-se no mistério do infinito e o seu corpo definha à luz dos olhos da alma que os do corpo não irradiam mais luz. Enxerga somente o sonho de eterno visionário que o arrancou do mundo, o separou dos homens, no caminho da nova dimensão procurada incessantemente onde o amor seja registro da paz infinda. Um grito que foi anseio da procura repercutiu do alto da montanha e cindiu os céus com o seu brado: “ Deus, ó Deus, ó Deus!” Ninguém o escutou. Ninguém.O eco era pesado como chumbo mas a sua alma tinha a leveza da bandeira branca que a águia do mistério e do sonho carregou para o infinito. Na esperança do brado angustiante e clemente, só Deus aparece.
O solitário da montanha, finalmente, tranqüilizou-se e adormeceu aos pés do Omnipotente.”


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