sexta-feira, 30 de outubro de 2009

ECOS DA UTOPIA NO PARAÍSO PERDIDO

ALENTEJANO D´ÁVILA

I

É tudo verdade. O homem, entretido com os canteiros de flores, não deu pela minha aproximação. Penso que só fui notado pelas orquídeas selvagens, agarradas aos troncos das mangueiras alinhadas na alameda, parecendo curvar-se à minha passagem, em reverencial atitude. Minto. Duas vacas leiteiras, pastando no cercado, arrebanhando febras de capim nas touceiras verdejantes, pareceram notar-me. Ruminando sem parar, levantaram a cabeça e me olharam com pasmaceira contemplativa. Admiradas, lá a seu modo, não baixaram mais a cabeça para abocanhar o resto do capim atufando a moita.Não. Prosseguiram ruminando o alimento refluindo do estômago, num vagar de embalar crianças. Depois, com uma ponta ou outra de erva entalada nos cantos da boca, fixaram-me atentas e, num mugir lânguido, sensual, como se fosse, -“ mééé!...”, afastaram as patas traseiras empurradas pelos úberes amojados e urinaram abundantemente, abrindo poça no chão. Era o sinal, saberia daí a pouco, da ordenha. O homem não tardaria a atender ao sintomático apelo destas criaturas.

Lembro que, nalguns mourões de peroba, demarcando a cerca, variedade de aves e pássaros, suspenderam o gorjeio e me reverenciaram no olhar. De resto, flores e mais flores, exalando perfume que inebriava. A manhã límpida adornava um céu brasileiro. Borboletas dos mais variados matizes, flanavam ao sabor da brisa, exibindo a graciosidade dos corpos minúsculos. Já havia abelhas obreiras zumbindo em volta das flores à cata do pólen, carregado nas patinhas ágeis a caminho da colméia oculta na mataria. No canteiro dos fundos, continuava o mesmo homem do qual me aproximei.

-Bom dia, amigo! – saudei-o. Ele, de tronco curvado, continuou cuidando das flores e retribuiu a saudação sem me olhar, parecendo não se incomodar comigo.

- Venha com Deus!- e prosseguiu no mesmo entretém de rotina. Provoquei-o:

-Como vai, o amigo?

-Graças a Deus, muito bem, meu irmão.

Provoquei-o de novo:

-Pelo jeito, esse canteiro é muito especial. O amigo nem se tocou com a minha chegada e nem quis saber quem eu era.

-Como não? Você é meu irmão. Já o conheço de outras visitas.

-Mas, eu nunca estive aqui.

-É o que você diz e não o que eu penso. Se não foi você, foi o outro você.

-Que outro?

-O outro que também é seu irmão e meu irmão igual. Somos todos irmãos. Nó, os humanos, os animais, as aves, a natureza, tudo o que nos rodeia, o universo por inteiro. Pouco importa que seja você, o de hoje, como o de ontem foi e o de amanhã será. Conheço todos pela voz que vem da alma e nos identifica na fraternidade universal. Somos irmãos, meu querido. A sua voz não me é estranha. Esteja à vontade. A casa é sua, ou melhor, nossa.

O homem continuou insistindo e eu continuei perplexo. Nem falei mais. Quer dizer, não parava de falar comigo mesmo. Esta mudez ninguém pressentiria. Foi quando o homem se ergueu com uma flor na mão. Encarou-me e ofereceu-me a rosa vermelha que segurava.

-Tome. É sua. Cheire- baixou-se para colher outra no mesmo canteiro e segurou-a na mão. Só quando se ergueu de novo, reparei que o homem com quem conversava era cego. Veio o espanto. Murmurei para mim mesmo: “Meu Deus! O homem é cego !”. Pude, então, observá-lo melhor e confirmar a surpresa. Era espantoso, sim. Olhos claros, grandes, parecendo enxergar o infinito. O homem sorriu, cheirou a flor, sorveu o perfume e comentou inebriado:

-Como a natureza é pródiga! Que perfume delicioso! Cheire – e aproximou-me a flor.

Imaginei-me ante um quadro surrealista. Queria lhe fazer perguntas, muitas perguntas. Porém, sentia-me tolhido, confuso, incrédulo, ante o que via e se me afigurava. O cego pareceu adivinhar a minha perplexidade e tranquilizou-me com benevolência:

-Como vê, já nos conhecíamos de há muito.

-Amigo, nunca estive aqui.

-Todos os dias vem gente aqui. Gente como você. Prezo muito os amigos que me visitam. De modo que se não foi você, como diz, foi você dentro de um seu amigo, o que, para mim, é a mesma coisa. Como vê, sou cego. Só enxergo com os olhos da alma e não faço distinção entre os homens e a natureza. Somos todos irmãos. Já pode sentir comigo este amor intenso que nos une uns aos outros, juntos com a natureza que nos contempla. Bem – direcionou a conversa- vamos lá que as vacas nos esperam. Todos os dias têm que ser ordenhadas. São generosas e precisam distribuir a sua generosidade – o meu espanto continuava e ele prosseguia- daqui a pouco chegam as visitas do costume – crianças que foram jogadas na rua. Irmãos que irmãos desprezam. O leite é repartido pelas crianças e, junto com elas, fazemos a refeição com que nos alimentamos todos, irmanados na mesma fraternidade. Tem muita verdura e hortaliça na horta ali ao lado – apontou o local com os braços. Se o irmão esperar mais um pouco, vai compartilhar conosco desta refeição comunitária. Todos os dias, aqui, se revive uma nova Última Ceia, como está escrito lá nos Evangelhos. Sei disto porque o aprendi com o meu pai que sempre me contava estas coisas. Vai gostar.

O caso é que já havíamos chegado até onde estavam as vacas a que se referia. Os animais mugiam, erguendo a cabeça na nossa direção como se fossem saudar-nos. O homem, apontando para a cerca, pediu-me que pegasse o vasilhame emborcado num dos mourões de peroba e lho entregasse. De imediato, o atendi. Vi os latões de borco, peguei-os e entreguei-lhe o primeiro. Ele logo flectiu as pernas, dobrou os joelhos e entalou o latão ali. Ajoelhado, afagava as tetas da vaca. Era carícia grata ao animal, abrindo as patas, lasseando o corpo, oferecendo-se para a ordenha.

O animal continuava ruminando pachorrento e eu contemplava o espichar do bico das tetas amojadas, cedendo à pressão calosa das mãos daquele homem fazendo espirrar o leite em esguichos dentro do latão que se ia enchendo aos borbulhões. Em seguida, pediu-me que lhe alcançasse o segundo latão. Obedeci e fiz-lhe entrega da vasilha. Então, ele assobiou e a outra vaca atendeu ao assobio e encaminhou-se na sua direção. De leve, deu-lhe uma palmada nas ancas. A vaca abriu as patas traseiras e, seguindo o mesmo ritual, ordenhou-a. Em pouco tempo encheu mais este latão e disse:

“-Está pronto o leite das crianças.

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